Diálogo a três vozes (I)
Parte Um – Duas Vozes
Devia começar com “querido João”, que é assim que se começam as cartas, com uma saudação inicial, mas não gosto de escrita estereotipada. Sei que, mais cedo ou mais tarde, vou morrer e não o quero fazer sem que saibas, sem que me confesse. Sem aliviar o peso que trago dentro de mim. Depois do parágrafo introdutório, posso começar.
Estou aqui sem saber porque estou. Estarei tão velho assim que valha a pena a minha vinda para um lar? Esforço-me e não compreendo em que buraco, ou universo paralelo, se escondeu toda a minha vida. Talvez não a tenha sabido viver. Não compreendo. Se para nós o tempo se limita a fluir, imutável, sem qualquer aceleração ou retardamento, por que razão a minha vida passou sem que eu desse por isso?
A imagem que o espelho me devolve todas as manhãs, como a superfície límpida e cristalina de um lago, não é a minha. Não pode ser! Desesperado, apetece-me esmurrar-me, bater-me até me faltar a força, pisar-me, pontapear-me, dirigir todos os actos de violência contra mim. Quase arranco os cabelos e a barba, quase arranho a minha própria face até espirrar sangue, de tanta raiva contida que se esforça por escapar.
Olha para mim! Eu tenho olhos verdes, brilhantes e vivos, pele morena, lisa, com alguns pêlos castanhos a despontar. Cabelo castanho, também, curto, mas ligeiramente ondulado quando maior. Porte atlético, peito e braços musculados. Sou alto.
(Não! Quem pensas tu que estás a enganar? Cala-te! Cala-te, velho inútil e acabado! Esse eras tu ontem!)
Um ontem que me dizem ter passado há sessenta e cinco anos. Mas eu não acredito! Não posso acreditar, ou a realidade que me rodeia consumir-me-á. O que o espelho, mentiroso descarado, me mostra é um homem de cabelo e barba brancas e rugas acentuadas. As minhas pernas não mexem. Arranjaram-me umas novas, circulares, que me movem, deslizando pelo chão. Já não sou alto; perdi grande parte da minha altura. Os músculos definharam. Nas minhas costas, ergue-se uma colina que não me deixa endireitar.
(Não fossem as pernas paralisadas e estavas pronto para subir ao campanário da Notre Dame e tocar o sino, qual Quasimodo retirado dos livros e materializado em ti.)
E a minha boca? Só não me rio perante o meu sorriso desdentado, porque tenho ataques de tosse! Já não consigo articular bem as palavras – vale-me a mão, que ainda escreve, apesar de demorar mais tempo, muito mais, do que no meu ontem. O número de dentes reduziu-se e agora a boca está metida para dentro; mal vejo os lábios. Mas o que me assusta, realmente, são os olhos. Que lhes aconteceu? Não estão brilhantes, nem vivos... serão o espelho da vida que se vai de mim? Estão tão baços, apagam-se lentamente. O verde tornou-se acastanhado e isso deixa-me uma mágoa e tristeza tão grandes que as palavras que aqui escrevo, a custo, não conseguem exprimir. Pelo menos, perpetuei os meus olhos em ti.
Estou rodeado por outros velhos. São feios e bafientos, morrem aos poucos, senis.
(Não estás a ser demasiado cruel nessa descrição? Ou um pouco exagerado?)
É sem intenção... Lançam breves gemidos e suspiros, por vezes, que me arrepiam. Passam horas com os olhos estagnados, olhando para o que não vêem, esperando por um fim que teima em não chegar. E eu... eu não me sinto um deles. Não estou, não sou senil. Ou sê-lo-ei tanto que nem o reconheço?
Hoje é véspera de Natal. Esta noite, devia estar excitado e ansioso por abrir os presentes, como anteontem, e, no entanto, toda essa magia se foi. O Natal é como qualquer outro dia. Faz tanto frio lá fora. Neva dentro de mim.
Devia começar com “querido João”, que é assim que se começam as cartas, com uma saudação inicial, mas não gosto de escrita estereotipada. Sei que, mais cedo ou mais tarde, vou morrer e não o quero fazer sem que saibas, sem que me confesse. Sem aliviar o peso que trago dentro de mim. Depois do parágrafo introdutório, posso começar.
Estou aqui sem saber porque estou. Estarei tão velho assim que valha a pena a minha vinda para um lar? Esforço-me e não compreendo em que buraco, ou universo paralelo, se escondeu toda a minha vida. Talvez não a tenha sabido viver. Não compreendo. Se para nós o tempo se limita a fluir, imutável, sem qualquer aceleração ou retardamento, por que razão a minha vida passou sem que eu desse por isso?
A imagem que o espelho me devolve todas as manhãs, como a superfície límpida e cristalina de um lago, não é a minha. Não pode ser! Desesperado, apetece-me esmurrar-me, bater-me até me faltar a força, pisar-me, pontapear-me, dirigir todos os actos de violência contra mim. Quase arranco os cabelos e a barba, quase arranho a minha própria face até espirrar sangue, de tanta raiva contida que se esforça por escapar.
Olha para mim! Eu tenho olhos verdes, brilhantes e vivos, pele morena, lisa, com alguns pêlos castanhos a despontar. Cabelo castanho, também, curto, mas ligeiramente ondulado quando maior. Porte atlético, peito e braços musculados. Sou alto.
(Não! Quem pensas tu que estás a enganar? Cala-te! Cala-te, velho inútil e acabado! Esse eras tu ontem!)
Um ontem que me dizem ter passado há sessenta e cinco anos. Mas eu não acredito! Não posso acreditar, ou a realidade que me rodeia consumir-me-á. O que o espelho, mentiroso descarado, me mostra é um homem de cabelo e barba brancas e rugas acentuadas. As minhas pernas não mexem. Arranjaram-me umas novas, circulares, que me movem, deslizando pelo chão. Já não sou alto; perdi grande parte da minha altura. Os músculos definharam. Nas minhas costas, ergue-se uma colina que não me deixa endireitar.
(Não fossem as pernas paralisadas e estavas pronto para subir ao campanário da Notre Dame e tocar o sino, qual Quasimodo retirado dos livros e materializado em ti.)
E a minha boca? Só não me rio perante o meu sorriso desdentado, porque tenho ataques de tosse! Já não consigo articular bem as palavras – vale-me a mão, que ainda escreve, apesar de demorar mais tempo, muito mais, do que no meu ontem. O número de dentes reduziu-se e agora a boca está metida para dentro; mal vejo os lábios. Mas o que me assusta, realmente, são os olhos. Que lhes aconteceu? Não estão brilhantes, nem vivos... serão o espelho da vida que se vai de mim? Estão tão baços, apagam-se lentamente. O verde tornou-se acastanhado e isso deixa-me uma mágoa e tristeza tão grandes que as palavras que aqui escrevo, a custo, não conseguem exprimir. Pelo menos, perpetuei os meus olhos em ti.
Estou rodeado por outros velhos. São feios e bafientos, morrem aos poucos, senis.
(Não estás a ser demasiado cruel nessa descrição? Ou um pouco exagerado?)
É sem intenção... Lançam breves gemidos e suspiros, por vezes, que me arrepiam. Passam horas com os olhos estagnados, olhando para o que não vêem, esperando por um fim que teima em não chegar. E eu... eu não me sinto um deles. Não estou, não sou senil. Ou sê-lo-ei tanto que nem o reconheço?
Hoje é véspera de Natal. Esta noite, devia estar excitado e ansioso por abrir os presentes, como anteontem, e, no entanto, toda essa magia se foi. O Natal é como qualquer outro dia. Faz tanto frio lá fora. Neva dentro de mim.
(continua)