João (V)
(continuação)
Toda a gente se vestia de negro. Chovia torrencialmente. Debaixo dos guarda-chuvas, várias pessoas assistiam ao funeral. Na primeira fila, junto à cova feita previamente, um rapazinho olhava fixamente o caixão, com olhos quase vítreos. Algumas lágrimas escorriam-lhe pela face, misturando-se com a chuva, tanto ele como o céu unidos na mesma dor.
Começaram a baixar o caixão, lentamente. Enquanto dois homens o cobriam, desaparecendo sob a terra, a verdade abateu-se crua sobre João: nunca mais veria a única pessoa que o amara.
Nesse dia, Maria estava sóbria. Era-lhe estranho o estado consciente, era-lhe estranha a dor, era-lhe estranho o próprio verbo sentir. Normalmente, vivia alheada de tudo e todos, refugiando-se numa garrafa, às vezes mais. Começara por fazer isso uma vez ainda antes do nascimento do filho e, a partir daí, o álcool tornara-se a solução para todos os seus problemas, a solução para escapar à vida miserável que levava.
Só foi para casa muito depois do filho. Quando chegou, João estava no sofá, imóvel, agarrado a um pequeno urso de peluche como se dele dependesse a sua vida, apertando-o contra o peito, junto ao coração. Era apenas um urso, imundo, rasgado, com bocados de espuma a saírem pelos rasgões. Um peluche tão miserável quanto ele. Mas não era somente um boneco. Era a única prenda que alguma vez recebera, oferecido pela avó. Era o único objecto que o ligava a ela. Apertava-o desesperadamente, como se abraçasse a própria avó, como se a quisesse impedir de morrer, impedir de se afastar dele.
Maria sentou-se junto ao filho. Não sabia o que fazer. Nunca conversara com ele, não sabia como o abordar.
- João...
O rapaz olhou-a, incrédulo. Não se lembrava de alguma vez ter ouvido a mãe chamá-lo sem ser aos gritos. Estranhou.
- Não fiques triste. Tens-me a mim.
Achou que a mãe só podia estar a brincar. Nunca se preocupara com ele, de onde lhe viera toda aquela generosidade momentaneamente? Manteve-se calado.
- Agora, vai-te deitar e larga essa porcaria! Está todo sujo, que nojo!
E foi a gota de água. Como é que se atrevia a falar assim do urso, do seu urso? O peluche ao qual se agarrara quando estava triste. Quando a mãe chegava bêbada a casa, partia tudo e ele acordava em pânico, com medo de levar um enxerto de pancada. Quando via os colegas da escola a serem acarinhados pelas mães, recebendo abraços e beijinhos, e ele se perguntava por que razão a sua mãe também não agia assim.
- Não fales assim! Não podes falar assim!
Maria não podia perceber o que se passava.
- Vais zangar-te comigo por causa de um urso?
- O meu urso esteve sempre comigo quando estava mais triste. Tu nunca te preocupaste comigo. Nunca! – olhou-a com os olhos vermelhos, raiados de sangue – Odeio-te.
Levantou-se a correr e desapareceu no quarto, deixando Maria boquiaberta no sofá. O filho odiava-a e sabia que tinha razão. Levantou-se, também. Estava sóbria há demasiado tempo.
(continua, mas não sei quando... não tenho tempo nem inspiração alguma para escrever o que quer que seja)
Toda a gente se vestia de negro. Chovia torrencialmente. Debaixo dos guarda-chuvas, várias pessoas assistiam ao funeral. Na primeira fila, junto à cova feita previamente, um rapazinho olhava fixamente o caixão, com olhos quase vítreos. Algumas lágrimas escorriam-lhe pela face, misturando-se com a chuva, tanto ele como o céu unidos na mesma dor.
Começaram a baixar o caixão, lentamente. Enquanto dois homens o cobriam, desaparecendo sob a terra, a verdade abateu-se crua sobre João: nunca mais veria a única pessoa que o amara.
Nesse dia, Maria estava sóbria. Era-lhe estranho o estado consciente, era-lhe estranha a dor, era-lhe estranho o próprio verbo sentir. Normalmente, vivia alheada de tudo e todos, refugiando-se numa garrafa, às vezes mais. Começara por fazer isso uma vez ainda antes do nascimento do filho e, a partir daí, o álcool tornara-se a solução para todos os seus problemas, a solução para escapar à vida miserável que levava.
Só foi para casa muito depois do filho. Quando chegou, João estava no sofá, imóvel, agarrado a um pequeno urso de peluche como se dele dependesse a sua vida, apertando-o contra o peito, junto ao coração. Era apenas um urso, imundo, rasgado, com bocados de espuma a saírem pelos rasgões. Um peluche tão miserável quanto ele. Mas não era somente um boneco. Era a única prenda que alguma vez recebera, oferecido pela avó. Era o único objecto que o ligava a ela. Apertava-o desesperadamente, como se abraçasse a própria avó, como se a quisesse impedir de morrer, impedir de se afastar dele.
Maria sentou-se junto ao filho. Não sabia o que fazer. Nunca conversara com ele, não sabia como o abordar.
- João...
O rapaz olhou-a, incrédulo. Não se lembrava de alguma vez ter ouvido a mãe chamá-lo sem ser aos gritos. Estranhou.
- Não fiques triste. Tens-me a mim.
Achou que a mãe só podia estar a brincar. Nunca se preocupara com ele, de onde lhe viera toda aquela generosidade momentaneamente? Manteve-se calado.
- Agora, vai-te deitar e larga essa porcaria! Está todo sujo, que nojo!
E foi a gota de água. Como é que se atrevia a falar assim do urso, do seu urso? O peluche ao qual se agarrara quando estava triste. Quando a mãe chegava bêbada a casa, partia tudo e ele acordava em pânico, com medo de levar um enxerto de pancada. Quando via os colegas da escola a serem acarinhados pelas mães, recebendo abraços e beijinhos, e ele se perguntava por que razão a sua mãe também não agia assim.
- Não fales assim! Não podes falar assim!
Maria não podia perceber o que se passava.
- Vais zangar-te comigo por causa de um urso?
- O meu urso esteve sempre comigo quando estava mais triste. Tu nunca te preocupaste comigo. Nunca! – olhou-a com os olhos vermelhos, raiados de sangue – Odeio-te.
Levantou-se a correr e desapareceu no quarto, deixando Maria boquiaberta no sofá. O filho odiava-a e sabia que tinha razão. Levantou-se, também. Estava sóbria há demasiado tempo.
(continua, mas não sei quando... não tenho tempo nem inspiração alguma para escrever o que quer que seja)