Diálogo a três vozes (II)
(continuação)
Mas... és tu, ali, à entrada! Vens a sorrir-me, como sempre, tal como eu costumava sorrir. Como um puto feliz depois de um jogo de futebol com os amigos. O puto que eu queria ser e não sou... nem serei nunca mais.
(Vá lá, velha carcaça, ao menos fizeste alguma coisa decente e aproveitável, nessa tua vida que nem desse nome é digna.)
Não me atormentes mais! Não podes parar de me consumir? Eu sei! Eu sei! Sei que não vivi como devia, mas pára agora. Deixa-me falar com o meu filho, com o meu João.
Já foste. A visita foi curta. Quiseste saber que caderno era este, por que razão segurava uma caneta na mão trémula. Não te contei. Não precisas de saber que o teu pai é velho e louco. Não antes do tempo. Quando souberes, já não me poderás olhar, recriminado-me e vendo os meus olhos baços rasos de vergonha. Quiseste ler, mas finquei os dedos na capa e não insististe. Vieste desejar-me um Bom Natal...
(Bom Natal?! Com oitenta anos e enfiado num lar com pessoas que vês todos os dias e não conheces de lado nenhum e com quem raramente falas?!)
... e dizer-me que não me pudeste levar para consoar com o resto da família por causa da cadeira de rodas: não há elevador e vocês moram no terceiro andar.
(Desculpas... Quem é que quer um velho empecilho a rabujar e reclamar a toda a hora? Acorda! És velho, idoso para ser educado, e já não serves para nada! Ninguém te quer!)
Não são desculpas! É a verdade! O meu João não mente. Passo o Natal aqui, com os que dizem ser da minha geração. E por falar nisso, já não suporto nem mais um segundo estas mulheres a fitar as mãos, sussurrando, sibilando rezas murmuradas. Não é por rezarem que vão viver mais tempo, ou morrer mais depressa. Acontece quando acontecer! E, entretanto, que não me zumbam aos ouvidos!
Vim para o quarto, aqui estou mais sossegado. Pedi que me sentassem na cama. Foram precisas três mulheres para segurar este peso morto.
Estou tão cansado... sinto a minha mente a pulsar de energia, mas logo esta prisão corpórea me lembra que energia não é palavra para o meu dicionário. Sinto o meu corpo morto, incapaz de acompanhar o ritmo frenético do meu pensamento.
Ontem, sonhei. Há muito que não sonhava, ou então, simplesmente, não me lembrava de que o tivesse feito. Sonhei que voava, não eu, mas o que de vivo há em mim. A minha alma voava, livre e feliz. Perdia-me de felicidade naquela imensidão de liberdade. E descobri que a liberdade tem a cor azul. Sabias disto, filho? A liberdade é azul! Voava livre no céu. Nadava livre no mar. Eu era a Natureza e ela era eu e habitava em mim. Já não carregava as minhas pernas inertes, nem ouvia a tua voz irritante sempre a congeminar uma forma de me magoar – não a tua, mas a deste filho da mãe que se esconde dentro de mim. Sim, tu, consciência cruel! Não falas, agora? Não me interrompes? Cobarde! O sol deitou-se no meu horizonte, alaranjado, primeiro, violeta, depois. Foi tão bonito! Vi surgir no meu céu a lua, deusa do meu imaginário, que me roubaram depois de me trazerem para morar, ou morrer, aqui. Depois acordei e regressei à real-idade do meu ser.
Estou a sentir-me mal por ter desprezado a religiosidade daquelas senhoras que me vêem, cumprimentam e sorriem todos os dias. No fim de contas, também eu já depositei todo o meu destino nas mãos de Deus. Também já lhe sussurrei, a medo, baixinho, para não incomodar, pedidos e súplicas. Mas de nada me valeu e talvez tenha sido por isso que deixei de acreditar. Fraco, não? Sabias que tinhas um pai assim? Incapaz de aceitar uma derrota na vida, ignorei todas as vitórias que se poderiam seguir. Sou um frustrado. E afirmo, com a certeza da experiência, que a frustração é o pior sentimento que um ser humano pode experimentar. Olha para mim. Só, arrependido, velho, frustrado. Por que raio os meus pulmões não param de ventilar o meu corpo e o meu coração não pára de bater? Para me prolongar o sentimento de culpa?
Fui um mau filho desse Pai celestial. Quis tudo e quando Ele se recusou a dar-me o que desejava, virei-Lhe as costas, como um menino mimado e arrogante. Não aceitei que não pudesse receber Dele tudo de mão beijada. E na minha revolta egoísta, virei-Lhe as costas para nunca mais voltar. Comecei a desprezar todos os que acreditavam Nele. Talvez nessa fase de revolta eu tivesse sido posto à prova. Não fui aprovado.
Esse corte de relações aconteceu no meu ontem, quando era o rapaz que quero ver ao espelho. Nessa altura, a minha mão, agora trémula, era segura e forte quando agarrava a caneta. Era segura e forte no que escrevia, não entrava em discussões comigo próprio. Comigo próprio, não, que eu não sou a minha consciência! A minha caneta era a minha arma. Usava-a destemidamente e atingia sempre os meus alvos. Escrevia bem. Não era um rapaz sensível, mas as palavras que escrevia eram. Não pareciam escritas por mim. Parecia haver alguém dentro de mim que as escrevia à sua maneira, aproveitando-me eu dessas palavras. Eram bonitas e soavam-me bem. E não só a mim. A minha professora de Português adorava o que escrevia, dava-me notas fabulosas, incentivava-me a escrever. E não era a única. Acho que devo muito a uma professora de Biologia que acreditava realmente em mim, naquilo que os outros chamavam de dom. Se não tivesse sido ela, provavelmente, nunca teria concorrido a um concurso literário. Nunca o teria ganho. Ainda hoje, quase sessenta e cinco anos depois, lhe devo isso. São dívidas que se contraem durante a vida e que quase nunca podem ser saldadas. Eu comecei a contraí-las muito cedo.
Mas a veia de escritor não me servia, somente, para ganhar concursos, isso até era o menos. Servia-me para conquistar raparigas. Carta para uma, carta para outra e alguma havia de ficar presa na rede das palavras ocas que lhes pareciam sensíveis e sinceras. Tolas ingénuas! E não sei quem era pior: elas, que acreditavam piamente nas minhas palavras, ou eu, que, imaturo, me aproveitava da ingenuidade delas para arranjar admiradoras apaixonadas, quase sempre para abandonar e desprezar passado uma semana. Como era ridículo! Todas aquelas palavras balofas não faziam sentido no seu todo!
Mas cresci! Graças a Deus!
(Como podes dar graças a um Ser em quem não acreditas? Hipócrita! Não sei como podes ter dentro de ti tanta hipocrisia...)
Era uma maneira de falar. Mas deixa-me retomar o ponto onde parei. Cresci e aprendi que não podia usar um dom para brincar com os sentimentos de outras pessoas. Parecia que estava a perder todo o egoísmo que me costumava caracterizar. E dou graças a Deus por isso, apesar de já não acreditar nele – é um contra-senso, não preciso que mo lembres, mas na altura, acreditava.
De um momento para o outro, parecia que a testosterona deixara de fervilhar dentro de mim. Toda e cada carta que escrevia reflectia exactamente o que sentia. Tornaram-se mais raras, porque só havia um alvo, não imensos ao mesmo tempo. Já não havia um segundo eu a escrever por mim. Já não fingia ser o que não era. A minha caneta não era a minha arma, era, tão simplesmente, uma extensão da minha alma.
Presumo que saibas para quem se dirigiam todas as minhas cartas, a partir desse ponto. Exacto. Para a tua mãe. A mulher fantástica que ela era não precisas que to lembre, nem é esse o objectivo desta carta. Mas, agora, não resisto a relembrá-la.
(continua)
Mas... és tu, ali, à entrada! Vens a sorrir-me, como sempre, tal como eu costumava sorrir. Como um puto feliz depois de um jogo de futebol com os amigos. O puto que eu queria ser e não sou... nem serei nunca mais.
(Vá lá, velha carcaça, ao menos fizeste alguma coisa decente e aproveitável, nessa tua vida que nem desse nome é digna.)
Não me atormentes mais! Não podes parar de me consumir? Eu sei! Eu sei! Sei que não vivi como devia, mas pára agora. Deixa-me falar com o meu filho, com o meu João.
Já foste. A visita foi curta. Quiseste saber que caderno era este, por que razão segurava uma caneta na mão trémula. Não te contei. Não precisas de saber que o teu pai é velho e louco. Não antes do tempo. Quando souberes, já não me poderás olhar, recriminado-me e vendo os meus olhos baços rasos de vergonha. Quiseste ler, mas finquei os dedos na capa e não insististe. Vieste desejar-me um Bom Natal...
(Bom Natal?! Com oitenta anos e enfiado num lar com pessoas que vês todos os dias e não conheces de lado nenhum e com quem raramente falas?!)
... e dizer-me que não me pudeste levar para consoar com o resto da família por causa da cadeira de rodas: não há elevador e vocês moram no terceiro andar.
(Desculpas... Quem é que quer um velho empecilho a rabujar e reclamar a toda a hora? Acorda! És velho, idoso para ser educado, e já não serves para nada! Ninguém te quer!)
Não são desculpas! É a verdade! O meu João não mente. Passo o Natal aqui, com os que dizem ser da minha geração. E por falar nisso, já não suporto nem mais um segundo estas mulheres a fitar as mãos, sussurrando, sibilando rezas murmuradas. Não é por rezarem que vão viver mais tempo, ou morrer mais depressa. Acontece quando acontecer! E, entretanto, que não me zumbam aos ouvidos!
Vim para o quarto, aqui estou mais sossegado. Pedi que me sentassem na cama. Foram precisas três mulheres para segurar este peso morto.
Estou tão cansado... sinto a minha mente a pulsar de energia, mas logo esta prisão corpórea me lembra que energia não é palavra para o meu dicionário. Sinto o meu corpo morto, incapaz de acompanhar o ritmo frenético do meu pensamento.
Ontem, sonhei. Há muito que não sonhava, ou então, simplesmente, não me lembrava de que o tivesse feito. Sonhei que voava, não eu, mas o que de vivo há em mim. A minha alma voava, livre e feliz. Perdia-me de felicidade naquela imensidão de liberdade. E descobri que a liberdade tem a cor azul. Sabias disto, filho? A liberdade é azul! Voava livre no céu. Nadava livre no mar. Eu era a Natureza e ela era eu e habitava em mim. Já não carregava as minhas pernas inertes, nem ouvia a tua voz irritante sempre a congeminar uma forma de me magoar – não a tua, mas a deste filho da mãe que se esconde dentro de mim. Sim, tu, consciência cruel! Não falas, agora? Não me interrompes? Cobarde! O sol deitou-se no meu horizonte, alaranjado, primeiro, violeta, depois. Foi tão bonito! Vi surgir no meu céu a lua, deusa do meu imaginário, que me roubaram depois de me trazerem para morar, ou morrer, aqui. Depois acordei e regressei à real-idade do meu ser.
Estou a sentir-me mal por ter desprezado a religiosidade daquelas senhoras que me vêem, cumprimentam e sorriem todos os dias. No fim de contas, também eu já depositei todo o meu destino nas mãos de Deus. Também já lhe sussurrei, a medo, baixinho, para não incomodar, pedidos e súplicas. Mas de nada me valeu e talvez tenha sido por isso que deixei de acreditar. Fraco, não? Sabias que tinhas um pai assim? Incapaz de aceitar uma derrota na vida, ignorei todas as vitórias que se poderiam seguir. Sou um frustrado. E afirmo, com a certeza da experiência, que a frustração é o pior sentimento que um ser humano pode experimentar. Olha para mim. Só, arrependido, velho, frustrado. Por que raio os meus pulmões não param de ventilar o meu corpo e o meu coração não pára de bater? Para me prolongar o sentimento de culpa?
Fui um mau filho desse Pai celestial. Quis tudo e quando Ele se recusou a dar-me o que desejava, virei-Lhe as costas, como um menino mimado e arrogante. Não aceitei que não pudesse receber Dele tudo de mão beijada. E na minha revolta egoísta, virei-Lhe as costas para nunca mais voltar. Comecei a desprezar todos os que acreditavam Nele. Talvez nessa fase de revolta eu tivesse sido posto à prova. Não fui aprovado.
Esse corte de relações aconteceu no meu ontem, quando era o rapaz que quero ver ao espelho. Nessa altura, a minha mão, agora trémula, era segura e forte quando agarrava a caneta. Era segura e forte no que escrevia, não entrava em discussões comigo próprio. Comigo próprio, não, que eu não sou a minha consciência! A minha caneta era a minha arma. Usava-a destemidamente e atingia sempre os meus alvos. Escrevia bem. Não era um rapaz sensível, mas as palavras que escrevia eram. Não pareciam escritas por mim. Parecia haver alguém dentro de mim que as escrevia à sua maneira, aproveitando-me eu dessas palavras. Eram bonitas e soavam-me bem. E não só a mim. A minha professora de Português adorava o que escrevia, dava-me notas fabulosas, incentivava-me a escrever. E não era a única. Acho que devo muito a uma professora de Biologia que acreditava realmente em mim, naquilo que os outros chamavam de dom. Se não tivesse sido ela, provavelmente, nunca teria concorrido a um concurso literário. Nunca o teria ganho. Ainda hoje, quase sessenta e cinco anos depois, lhe devo isso. São dívidas que se contraem durante a vida e que quase nunca podem ser saldadas. Eu comecei a contraí-las muito cedo.
Mas a veia de escritor não me servia, somente, para ganhar concursos, isso até era o menos. Servia-me para conquistar raparigas. Carta para uma, carta para outra e alguma havia de ficar presa na rede das palavras ocas que lhes pareciam sensíveis e sinceras. Tolas ingénuas! E não sei quem era pior: elas, que acreditavam piamente nas minhas palavras, ou eu, que, imaturo, me aproveitava da ingenuidade delas para arranjar admiradoras apaixonadas, quase sempre para abandonar e desprezar passado uma semana. Como era ridículo! Todas aquelas palavras balofas não faziam sentido no seu todo!
Mas cresci! Graças a Deus!
(Como podes dar graças a um Ser em quem não acreditas? Hipócrita! Não sei como podes ter dentro de ti tanta hipocrisia...)
Era uma maneira de falar. Mas deixa-me retomar o ponto onde parei. Cresci e aprendi que não podia usar um dom para brincar com os sentimentos de outras pessoas. Parecia que estava a perder todo o egoísmo que me costumava caracterizar. E dou graças a Deus por isso, apesar de já não acreditar nele – é um contra-senso, não preciso que mo lembres, mas na altura, acreditava.
De um momento para o outro, parecia que a testosterona deixara de fervilhar dentro de mim. Toda e cada carta que escrevia reflectia exactamente o que sentia. Tornaram-se mais raras, porque só havia um alvo, não imensos ao mesmo tempo. Já não havia um segundo eu a escrever por mim. Já não fingia ser o que não era. A minha caneta não era a minha arma, era, tão simplesmente, uma extensão da minha alma.
Presumo que saibas para quem se dirigiam todas as minhas cartas, a partir desse ponto. Exacto. Para a tua mãe. A mulher fantástica que ela era não precisas que to lembre, nem é esse o objectivo desta carta. Mas, agora, não resisto a relembrá-la.
(continua)
2 Comments:
Talvez não confies na minha imparcialidade, e sei também que não posso primir pela originalidade depois de todos os comentarios que já fiz aos teus textos (alguns que te deixei no teu antigo blog, outros que te digo, outros que imagino dizer-t assim que os leios), mas vou tentar ser o mais sincera possivel!
Antes demais adorei reler aquela história que escreves-t no oitano ano (lembro-m tão bem... aquele arrepio na espilha assim que o lest (ou foi a stora de portugues?) numa aula... foi nesse momento que me apercebi que de facto tens um dom... nao só o da escrita, mas o de veres mais longe, mais dentro...)... Sei que reli partes no fénix =)
Relativamente a este ultimo conto... Quero muito ler o final... O pormenor da conversa com a consciencia é fascinante (não temos todos muitos vezes grandes discussões com a nossa?)!
Obrigado pela oportunidade de espreitar um pouco o que escreves e também a visão do mundo (que se lê bem nas entrelinhas)!
beijos desta tua amiga (estou autorizada a utilizar o termo, n estou? =) )
Foi a stôra de Português que leu esse texto primeiro, no 8º ano... =)A prof Conceição tinha-me pedido para escrever qualquer coisa, porque gostava que eu participasse no concurso literário e eu escrevi. E dei-lho a ler. "Não está grande coisa, mas não consegui escrever melhor. Desculpe...", foi o que lhe disse (lembro-me tão bem desse dia!). E ela leu-o e ficou... espantada, acho eu.
Claro que estás autorizada a usar esse termo. Houve tempos em que não estiveste, mas há já muitos anos que estás. No fim de contas, és a pessoa que conheço há mais tempo e com quem ainda me dou (12 anos, não é?). Lembro-me do dia em que chegaste à nossa turma, no 1º ano. Foi há tanto tempo... =)
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